
Maria dos Céus apresenta um espetáculo sobre solidão e resistência
Uma senhora, uma árvore e a espera pela chuva: é assim que começa “Maria dos Céus”, espetáculo da companhia paulista Fios de Sombra, apresentado nesta segunda-feira (7), no Centro Cultural UFG. Com manipulação de bonecos, sombras e silêncio, a peça convida o público a contemplar o tempo, os ciclos da vida e a resistência poética diante da escassez — de água, de companhia, de certezas.
Texto: Iasmin Feitosa
Na tarde de 7 de abril, o palco do Centro Cultural UFG recebeu Maria dos Céus, espetáculo da companhia Fios de Sombra, de São Paulo. Com duração de 45 minutos e voltado para crianças e famílias, a peça emociona ao narrar a história de uma senhora que vive isolada, mas encontra companhia e sentido na amizade silenciosa com uma árvore que a acompanha desde o nascimento. A ausência de água, o tempo suspenso e a presença simbólica da natureza compõem o cenário poético e contemplativo da montagem.
Contando com o manejo da atriz e bonequeira Paloma Barreto, Maria dos Céus surgiu em 2015 a partir do desejo da companhia de construir uma nova identidade artística. Inspirada em figuras femininas de sua família — avó, bisavó e tataravó —, Paloma criou uma personagem que carrega em seu corpo curvado e em seus gestos minuciosos a sabedoria, a resistência e a ternura de tantas mulheres do interior do Brasil. A relação da protagonista com a árvore seca fala não apenas da solidão, mas da capacidade de encontrar vínculos profundos com o mundo natural.
Com uma estética refinada que mistura teatro de bonecos, sombras e efeitos técnicos engenhosos, o espetáculo convida à pausa e à contemplação. É uma obra que propõe silêncio em meio ao ruído, gentileza em tempos acelerados e, acima de tudo, esperança. O Centro Cultural entrevistou a Paloma para que ela nos contasse mais sobre o espetáculo.
Confira a seguir.
ENTREVISTA
CENTRO CULTURAL: Paloma, como surgiu a personagem Maria dos Céus e o que ela representa para você dentro do universo da sua criação?
PALOMA BARRETO: Bom, a Maria dos Céus começou a ser construída por nós em 2015. Surgiu do desejo coletivo do grupo de criar uma nova identidade para a companhia. Foi um ano de transição, no qual trocamos a direção artística, e sentimos essa necessidade de desenvolver uma identidade própria, sabe? Até então, tudo ainda era muito pautado pelas experiências do antigo diretor, o Rafael Curti. A partir disso, iniciamos as pesquisas para desenvolver a personagem, e eu fui buscar inspiração nas minhas antepassadas (minha avó, bisavó, tataravó). Inclusive, quando fomos criar o esboço do boneco, utilizamos fotos de uma das minhas bisavós. Ela morava numa casinha muito parecida com a do cenário e tinha aquela postura mais curvadinha, sabe? Foi o perfil que usamos como referência estética para o boneco. Além disso, muitos dos gestos, dos movimentos, a partitura corporal do boneco, foram inspirados em senhorinhas que demonstram essa vitalidade e vigor, mesmo já com uma idade mais avançada. Então, para mim, Paloma, minha avó e minha bisavó foram grandes fontes de inspiração na criação da Maria dos Céus.
A relação de Maria com a árvore é cheia de ternura e resistência. De onde veio essa inspiração para falar sobre amizade, natureza e cuidado em um mesmo gesto?
A relação da Maria dos Céus com a árvore já fazia parte do enredo inicial da história. Desde o começo, sabíamos que haveria essa árvore seca, quase sem vida, e que o principal objetivo da personagem seria cultivar e tentar manter viva essa árvore, que foi sua companhia durante toda a vida. Esse era o ponto central da narrativa. Conforme fomos montando as ações físicas e construindo as cenas, essa relação foi sendo ressignificada. Passamos a evidenciar algo muito presente no modo de vida das pessoas do interior — como minha avó e minha bisavó, que vieram do interior do Nordeste.
Existe ali uma forte conexão com a terra, com a natureza, com a seca… Essa espera constante pela chuva. Então, esse contexto também alimentou a construção da história. E, ao mesmo tempo em que há solidão, ela é suavizada por essa presença simbólica, mesmo que inerte e silenciosa, da árvore. A Maria se relaciona com o que tem ao redor: a borboleta, o vagalume, os pequenos elementos da natureza que a cercam. Então, apesar de estar sozinha, ela não se sente solitária, porque encontra formas de se conectar com o mundo vivo ao seu redor. Essa relação traz, ao mesmo tempo, ternura, resistência e cuidado.
O espetáculo aborda ciclos. Como essa ideia se conecta com sua própria trajetória artística ou pessoal?
Falar sobre ciclos é falar sobre a vida, né? Pode até parecer clichê, mas é inevitável. E a minha trajetória é repleta de ciclos que se encerraram, mas que, de alguma forma, se complementam. Eu comecei minha formação como bailarina. Depois, cursei jornalismo, trabalhei na área por um tempo, mas o meu sonho sempre foi atuar no teatro. Então fui atrás disso depois de formada. E, hoje, na companhia Fios de Sombra, consigo reunir todas essas experiências.
A minha formação em dança me ajuda muito na manipulação dos bonecos. Como estudei durante anos o movimento corporal e a organicidade dos gestos, tento trazer essa mesma fluidez para os movimentos dos bonecos. Isso faz muita diferença. Já o jornalismo me ajuda bastante na produção de textos e na divulgação do nosso trabalho. E, ao mesmo tempo, alimentei esse sonho de infância, que sempre foi muito pulsante em mim: trabalhar com teatro.
Então, a minha vida sempre foi feita de ciclos que se encerraram, mas dos quais eu consegui extrair aprendizados e levar algo adiante — algo que continua vivo no meu caminho artístico e pessoal.
A seca e a escassez de água aparecem como pano de fundo. Você diria que “Maria dos Céus” também traz uma mensagem ecológica ou política?
Bom, com certeza. Mensagem política é o que não falta, né? O próprio ato de fazer arte num país onde é tão difícil viver disso já é, por si só, um ato de resistência, um ato político. E sim, “Maria dos Céus” também carrega uma mensagem ecológica. Inclusive, tivemos algumas ações nesse sentido. Se não me engano, há cerca de dois anos, houve uma crise ambiental no litoral aqui do estado de São Paulo, em que várias famílias ficaram sem acesso à água potável. Na época, nos sentimos muito incomodados por usarmos tantos litros de água em cena, enquanto havia pessoas passando por essa escassez.
Então, simbolicamente, fizemos uma grande doação de água para essas famílias, que estavam sendo ajudadas por uma mobilização local. A gente tenta sempre se envolver com esse tipo de causa. Acreditamos que a arte tem esse poder: de passar mensagens, de tocar as pessoas de alguma forma. E esse é o nosso objetivo — não queremos ensinar nada a ninguém, mas sim provocar reflexões, sensibilizar. Nos últimos anos, essa tem sido a nossa busca com os espetáculos: abordar temas sensíveis e relevantes, enquanto construímos uma nova identidade artística. Então, sim, há um olhar ecológico e político por trás de tudo isso.
A escolha de trabalhar com teatro de formas animadas (bonecos, sombras ou objetos) traz uma linguagem muito própria. Que elementos visuais e simbólicos você usou para contar essa história?
Bom, eu nunca imaginei que o meu sonho de vida fosse trabalhar com bonecos… Até o momento em que comecei a trabalhar com bonecos. Por incrível que pareça, um dos filmes que mais me marcou e que até hoje me encanta, me enche os olhos, é Labirinto — lançado, se não me engano, em 1985, o ano em que nasci. O filme é estrelado por David Bowie, mas todos os duendes da história são bonecos criados por Jim Henson, o mesmo que criou os Muppets, pelos quais ele é mais conhecido.
Foi uma união de grandes artistas. Se você olhar a ficha técnica de Labirinto, vai encontrar até o nome do George Lucas por lá. Muitos artistas consagrados estavam apenas começando naquela época, e esse filme me capturou desde sempre. Desde criança eu o alugava na locadora, assistia repetidamente. Essa era a Paloma de 6, 7 anos. Corta para a Paloma de 25 anos: de repente fui convidada pelo Rafael Curti e pelo Lucas Rodrigues para integrar a companhia que eles estavam fundando. Eles perguntaram se eu tinha interesse em trabalhar com teatro de animação, e quando me vi ali, pensei: “Meu Deus, era isso que eu sempre quis para a minha vida e não sabia.”
É uma forma de expressão fantástica, que não tem limites. O teatro de formas animadas desafia até mesmo a gravidade. Ele nos permite fazer muita coisa — e não se limita apenas aos bonecos. Envolve também o teatro de objetos, o teatro de sombras… é um leque infinito de possibilidades. Neste espetáculo, usamos o boneco de mesa com manipulação direta, mas também inserimos sombras — que são uma marca registrada do nosso trabalho. A técnica de sombras está presente em 99% das nossas criações; é a nossa especialidade, a base da nossa pesquisa, algo de que gostamos muito. Além disso, o Lucas, que é iluminador, traz muitas inovações e tecnologias que dialogam muito bem com o caráter artesanal do teatro de bonecos. Acho que conseguimos criar uma conversa interessante entre o artesanal e o tecnológico.
Utilizamos esses elementos e também toda a engenhosidade necessária para os efeitos que você viu: o efeito de chuva, o florescer das plantas… Tudo isso levou muito tempo para ser construído. Foram oito anos de trabalho nesse espetáculo, justamente por conta de todos os detalhes e dos desafios envolvidos.
O espetáculo é silencioso em certos momentos e convida à contemplação. Como foi pensar o ritmo e a respiração dessa obra?
Bom, fazer um teatro voltado para crianças e famílias, fugindo do padrão de palmas, músicas, cantos e participação direta, já é um grande desafio. As crianças costumam ir ao teatro acostumadas com o modelo tradicional, em que o vilão entra em cena pedindo silêncio e elas respondem gritando. Essa fórmula já está estabelecida no teatro infantil — e foi justamente dela que quisemos nos afastar, porque ela já existe, já está dada. Num mundo tão tecnológico, em que há coisas incríveis ao alcance da mão de uma criança — no tablet, no celular —, é ainda mais desafiador conseguir que ela fique sentada, assistindo a um espetáculo de bonecos, sem texto, com trilha sonora suave e com um tema mais sutil. São muitos os desafios, mas a gente quer assumir esses desafios. Essa é a nossa função enquanto artistas: propor.
Queremos dizer para a criança: "Agora, pare. Acalme-se. Sente. Respire. Olhe." E ela olha. Ela observa aquele vagalume que sobe e desce na escuridão, ao som de uma música suave. Observa aquela senhorinha caminhando para lá e para cá, muitas vezes em silêncio, às vezes apenas com o som do vento.
Escolhemos propositalmente trabalhar com esse tempo dilatado, como um desafio mesmo — tanto para nós, artistas, no sentido de manter a atenção do público, quanto para o próprio espectador, ao propormos: "Agora não vai ter uma enxurrada de informações a cada segundo. Agora é só uma borboletinha voando ao redor de uma erva." Como fazer com que a criança preste atenção nisso? Esse foi o nosso desafio. E, até agora, desde a estreia do espetáculo em 2023, temos recebido um retorno maravilhoso do público. Crianças que vieram até mim chorando, emocionadas… Isso, para nós, é ouro. Não tem preço.
A personagem vive distante “de tudo e de todos”. Você acredita que o espetáculo também fala sobre solidão — ou sobre uma outra forma de presença e conexão?
Sim, o espetáculo fala sobre a solidão — especialmente a solidão na velhice, que é muito comum e, muitas vezes, não recebe a devida atenção. Buscamos, com essa personagem, despertar identificação. Por isso mesmo eu comentei que me inspirei na minha avó, na minha bisavó. Muitas pessoas assistem e dizem: "Nossa, me lembrou muito a minha avó." Teve uma moça, por exemplo, quando nos apresentamos em Taubaté, no interior de São Paulo, que disse: "A Maria dos Céus é a minha mãe." E então ela me mostrou um vídeo da mãe dela balançando em um balanço... Eu fiquei arrepiada.
Essa identificação é o que buscamos, porque é isso que engaja o público. É isso que faz com que ele preste atenção até nos movimentos mais repetitivos da personagem — como a senhora levando o balde para cima e para baixo. Esses gestos geram empatia. As pessoas se reconhecem, se afeiçoam à Maria.
Como tem sido a recepção do público em diferentes lugares? Há alguma reação ou comentário que te marcou em especial?
Bom, como comentei em uma das respostas anteriores, teve aquela moça que disse ter visto a mãe dela na personagem — a mãe que também costumava se balançar em uma árvore, no meio do nada. Mas, no geral, o que mais me marca são as crianças que vêm falar comigo depois do espetáculo. Elas querem dizer o quanto gostaram da Maria, querem saber para onde ela foi no final... Isso é muito gratificante para nós, artistas. Muitas pessoas também nos procuram depois pelas redes sociais, especialmente no Instagram, para compartilhar o que sentiram. Às vezes, elas ficam tão emocionadas que não conseguem falar na hora, preferem esperar, digerir, e só depois escrevem.
Recebemos mensagens muito tocantes. Uma pessoa, por exemplo, mandou um texto enorme contando como a Maria a ajudou a sair de uma depressão, dizendo que o espetáculo foi como uma luz na vida dela. Então, tudo isso é muito, muito gratificante. A recepção tem sido fantástica em todas as cidades por onde passamos — de pais, filhos, professores... É uma resposta muito bonita, e a gente fica imensamente feliz.
Quais foram os maiores desafios — e talvez as maiores descobertas — no processo de criação de Maria dos Céus?
Bom, definitivamente, os maiores desafios em Maria dos Céus foram, sem dúvida, fazer chover sem queimar os refletores e conseguir fazer a árvore florescer. Esses dois elementos foram centrais e, de certa forma, responsáveis por termos levado tanto tempo para estrear o espetáculo. Quando concebemos a estrutura técnica, lá em 2015, a chuva até funcionou bem — visualmente ficou legal —, mas logo nos deparamos com a questão: “E agora? Essa água vai cair em cima do refletor.” Na época, ainda usávamos refletores com lâmpadas quentes, pois os refletores de LED não eram tão acessíveis como hoje. Isso levantou vários questionamentos: vamos usar uma proteção? Se a água cair diretamente, pode estourar a lâmpada? A gelatina usada para efeitos de cor vai derreter? Como resolver isso?
Naquele período, já vínhamos de um processo anterior com um espetáculo de sombras em que o Lucas havia desenvolvido refletores artesanais, que funcionaram super bem — especialmente porque queríamos trabalhar com sombras e transparências. Tínhamos algumas soluções possíveis, mas ainda assim esbarramos em muitos obstáculos. Depois partimos para testar materiais que pudessem ser usados na cenografia sem problemas com a água. Mas isso também demandou muito tempo: muitos testes não funcionaram, alguns materiais ficavam pesados demais, outros não apresentavam a textura que queríamos.
A parte do florescer também foi desafiadora: como esconder a flor? Como fazer com que ela apareça diante dos olhos do público de forma natural, quase mágica? Isso também nos exigiu anos de tentativas. Então, sim, o espetáculo demorou a acontecer por conta desses desafios, mas, por outro lado, ele amadureceu no tempo certo. Com o passar dos anos, ganhamos mais experiência, surgiram novas tecnologias — como os refletores de LED —, e fomos encontrando soluções.
Em uma viagem à Argentina, por exemplo, fizemos uma visita guiada ao Teatro San Martín. Observando uma cenografia de lá, tivemos um momento de descoberta: “Meu Deus, é esse o segredo!” A vida é isso — feita de experiências. E, com o tempo, conseguimos absorver essas vivências, transformá-las em soluções e, assim, superar os desafios que encontramos pelo caminho.
Para quem vai assistir ao espetáculo pela primeira vez: o que você espera que essa experiência desperte ou provoque?
Bom, sempre que convido alguém para assistir ao espetáculo — especialmente quando vou me apresentar em alguma cidade onde conheço pessoas — eu digo: "Vai lá assistir!" E, quando me perguntam se é para crianças, eu sempre respondo que a criança nunca vai sozinha ao teatro; ela sempre vai acompanhada de um adulto. Por isso, todos os nossos espetáculos têm camadas. A criança acessa uma camada, enquanto o adulto acessa outra, um pouco mais profunda. E cada pessoa é tocada de uma forma diferente.
O que eu espero, sinceramente, é que quem assista saia de alguma forma transformado. O tipo de transformação depende muito da subjetividade de cada um — do que está mais sensível, do que ressoa ali naquele momento. Mas eu espero sempre que algo se mova internamente. E, se não for para transformar de alguma maneira, para que fazer teatro, né?
Nosso desejo é tocar o público de algum jeito. A gente procura acessar essa sensibilidade — através do movimento delicado, da gentileza, da esperança. Porque, no fim das contas, o que é a Maria senão uma figura que representa uma esperança constante?
Mesmo sem chuva, ela guarda a pouca água que tem, rega a árvore todos os dias e espera, espera… até que um dia, floresce. Então, acho que essa é a mensagem que a gente transmite: uma mensagem de esperança.
CONCLUSÃO
“Maria dos Céus” vai além de um simples espetáculo de bonecos. É uma experiência sensorial que toca as emoções mais profundas, convidando o público a refletir sobre os ciclos da vida, a solidão e, principalmente, a esperança que nasce da resistência cotidiana. Em tempos de incertezas, a história de Maria, que cuida da árvore com o que resta, nos lembra da importância de persistir, mesmo quando a escassez parece tudo consumir. Ao fim, o que fica é a certeza de que, mesmo na quietude, a arte tem o poder de transformar e conectar pessoas, despertando sentimentos de renovação.