
Bastidores de E[cs]xtas[y]e com Gabriela Colorida e Cadu Freitas
Em entrevista sobre E[cs]xtas[y]e – Uma história de Romeu e Julieta, os atores Gabriela Colorida e Cadu Freitas revelam os bastidores, as camadas emocionais e políticas de seus personagens, e como a criação coletiva, a música popular brasileira e a vivência pessoal transformam o espetáculo em um lugar de pertencimento e resistência afetiva.
Texto por: Iasmin Feitosa
Recontar a tragédia de Romeu e Julieta, um dos textos mais revisitados da história do teatro, pode parecer, à primeira vista, um desafio exaustivamente trilhado. Mas o Fábrica Grupo de Teatro mostra que ainda há muito a ser dito — e sentido — sobre essa história. Em E[cs]xtas[y]e – Uma história de Romeu e Julieta, o clássico de Shakespeare ganha uma nova pulsação: atual, abrasiva e carregada de intensidade emocional. O espetáculo se reinventa a partir de músicas populares brasileiras e de uma dramaturgia que atravessa o amor em tempos de extremos ideológicos.
Nesta montagem, o amor não é um enfeite; ele é um campo de batalha. Sob direção de Wellington Dias e com direção musical de Ingrid Klug, E[cs]xtas[y]e funde texto, música e movimento em uma experiência estética e intensa. Ao longo de quase duas décadas de existência, o espetáculo passou por diversas encarnações, acompanhando o amadurecimento de seus atores — algo que se reflete diretamente no tom e nas escolhas artísticas da montagem atual.

Fotografia: Layza Vasconcelos
Conversamos com dois nomes centrais do elenco: Gabriela Colorida, que interpreta a Ama de Julieta, e Cadu Freitas, que dá vida ao Mercúcio. Os dois compartilham não apenas histórias de bastidores, mas também as inquietações, os aprendizados e os sentidos que atravessam essa experiência cênica. Com carinho, humor e uma dose generosa de reflexão, os atores revelam como E[cs]xtas[y]e é, para eles, mais do que um espetáculo — é um lugar de pertencimento, de criação coletiva e de reencontro com o agora.
Na entrevista a seguir, Gabriela e Cadu falam sobre os desafios de seus personagens, o uso da música como ferramenta narrativa, as nuances da encenação e os momentos que consideram o “coração” do espetáculo.

Fotografia: Layza Vasconcelos
Poderiam comentar sobre os papéis que vocês interpretam no espetáculo?
Gabriela Colorida: Eu interpreto a ama da Julieta, que, na minha visão, representa o vínculo materno da personagem. Desde a versão original de Shakespeare, a história se passa em um contexto de famílias italianas muito tradicionais. A mãe biológica da Julieta é retratada de forma mais rígida, séria e distante. Já a ama ocupa esse espaço de acolhimento, de afeto. Ela é quem escuta, quem brinca, quem oferece colo, quem enxuga as lágrimas e, muitas vezes, esconde a própria dor para cuidar da dor da Julieta. Para uma mulher que já perdeu tudo, a Julieta é o bem mais precioso.
Na nossa versão, assim como na de Shakespeare, a ama também exerce um papel cômico dentro do espetáculo, o que considero muito importante. Em uma peça dramática, esse alívio cômico funciona como um respiro. Como atriz, busquei referências ligadas à religiosidade e à espiritualidade — como as benzedeiras de cidades do interior, que sempre têm um banho, uma reza — e também nas ialorixás das religiões de matriz africana, ou nas senhoras da igreja com seus terços. Para mim, a ama é uma figura que representa a maternidade e também uma forma de maternar que se conecta ao sagrado.
Cadu Freitas: O personagem que interpreto é Mercúcio. Na minha visão, ele representa o amor levado às últimas consequências. O espetáculo aborda muito as fases e as formas do amor, e acredito que o Mercúcio seja um dos personagens mais passionais da peça. Ele vive seus sentimentos — sejam amores ou desgostos — de forma intensa e até mesmo inconveniente em certos momentos.
No nosso espetáculo, Mercúcio é o personagem queer. No texto original de Shakespeare, essa característica aparece de maneira mais sutil, nas entrelinhas. Já na nossa versão, isso é representado de forma mais clara em uma das cenas. Para mim, interpretar o Mercúcio é como dar voz a uma parte de mim mesmo. Ele expressa pensamentos que muitas pessoas têm, mas que normalmente são filtrados pelas normas sociais. Mercúcio não possui esse filtro; ele se entrega completamente, sem reservas.
Meu processo criativo partiu muito das minhas vivências pessoais como pessoa queer e também das experiências que compartilho com amigos e pessoas da comunidade. Participei da última montagem do espetáculo, em 2018, e acredito que o tempo entre as montagens nos permitiu amadurecer, não apenas como artistas, mas também na construção dos personagens. Foi como se, com o tempo, cada um ganhasse mais camadas, como uma cebola, o que deu mais profundidade ao espetáculo como um todo.
Considerando que o espetáculo aborda diferentes formas e fases do amor, com qual dessas manifestações vocês mais se identificam pessoalmente?
Gabriela Colorida: No espetáculo, falamos muito sobre os tempos do amor. Esta é a terceira montagem de E[cs]xtas[y]e da qual participo. Na primeira, eu tinha 17 anos. Hoje, estou com 33. A forma como eu enxergava o amor naquela época se aproximava muito do que Romeu e Julieta vivem na primeira fase — a paixão.
Hoje, refletindo a partir das minhas próprias vivências e também do processo de construção do espetáculo, identifico-me muito mais com a última fase do amor, representada no terceiro ato de Romeu e Julieta. Não pela tragédia final, mas pelo que esse amor representa: é um amor definitivo, incondicional. É aquele amor que, apesar de tudo, permanece. Que diz: “é isso, e pronto.”
E esse sentimento não está restrito ao amor romântico — entre namorados, esposos ou companheiros. Temos falado muito sobre isso. Eu amo profundamente meus amigos, e é um amor incondicional. Portanto, o tipo de amor com o qual mais me identifico no espetáculo é esse amor final, que não tem forma, nem idade, nem cor. Ele simplesmente é. Acima de qualquer circunstância, é amor — e pronto. Esse é o meu amor preferido.
Cadu Freitas: Eu me identifico muito com o primeiro amor. Aquele que representa o frescor, o frio na barriga, e que todo mundo gosta de experimentar em algum momento. É a fase do encantamento, da troca de olhares, de um toque que provoca quase uma explosão interna. Acho isso muito marcante.
Mas há também um tipo de amor representado na peça com o qual me conecto profundamente — o amor da ama pela Julieta. Acho esse vínculo especialmente interessante porque se trata de um amor genuíno, que não exige nada em troca. É um amor que vem do cuidado, da criação. Ela criou a Julieta, e esse afeto é tão intenso que se manifesta como um amor materno: quando você acredita em alguém, gosta dessa pessoa e a ama, você se dispõe a fazer tudo por ela. Pode ser como mãe, como irmão, como parceiro — não importa a relação exata. É um amor completo e incondicional.
O espetáculo incorpora elementos musicais diversos, como a MPB, o rock e até o sertanejo. Gostaria de saber se vocês já possuíam alguma vivência prévia com essas expressões artísticas ou se essa foi uma experiência nova proporcionada pelo espetáculo. Essas referências musicais fazem parte do cotidiano de vocês ou estão restritas ao contexto da peça?
Gabriela Colorida: Acredito que uma das características marcantes do E[cs]xtas[y]e é justamente essa: trazer para a cena nossas referências individuais. A trilha sonora do espetáculo, embora tenha direção musical assinada pela Ingrid, é fortemente influenciada por nós, atores.
Tivemos espaço para sugerir músicas desde as primeiras leituras do texto. O Wellington, nosso diretor, sempre nos incentivou a trazer sugestões musicais. Ele deixava claro que não era garantia de que seriam utilizadas, mas que poderiam contribuir significativamente para a construção da cena. Muitas vezes, uma música que o Cadu escuta, por exemplo, pode não estar no repertório do Wellington, mas tem total conexão com o universo do espetáculo. E isso de fato aconteceu.
A trilha é bastante variada. Inclui desde clássicos da MPB, como Chico Buarque, até músicas adaptadas especialmente para o espetáculo. Temos brega, sertanejo, pop... E[cs]xtas[y]e é um espetáculo profundamente ligado ao presente. E quando dizemos que ele é sobre o agora, estamos falando também de quem somos neste momento.
Se fossemos montar essa mesma peça daqui a três meses, é bem possível que a trilha sonora fosse completamente diferente, justamente porque nossas referências também mudam com o tempo. Portanto, tudo o que o público ouve no espetáculo, além do texto, reflete quem somos agora, neste exato momento.
Cadu Freitas: De forma geral, falando agora sobre o tipo de espetáculo que estamos produzindo, é importante destacar que o elenco, em sua maioria, têm uma relação muito próxima com o universo dos musicais. Consumimos esse tipo de conteúdo com frequência, e isso se reflete diretamente na construção da peça.
Como a Gabriela mencionou, tivemos uma liberdade criativa significativa concedida pelo nosso diretor, Wellington Dias. Essa abertura nos permitiu incorporar referências que fazem parte das nossas vivências, especialmente musicais que nos acompanham desde sempre. Tanto eu quanto a Gabi, por exemplo, somos profundamente apaixonados por teatro musical — é basicamente o que consumimos no nosso dia a dia.
Poder trazer para a prática artística aquilo que sempre imaginamos ou desejamos fazer, especialmente no que diz respeito à música, tem sido uma experiência muito interessante. Mesmo que alguns integrantes do elenco não tivessem familiaridade com determinadas músicas específicas, todos possuíam alguma referência ligada ao teatro musical. Isso, sem dúvida, foi um fator que enriqueceu muito o processo criativo e influenciou diretamente o resultado final do espetáculo.
Além de sugerirem músicas, vocês também têm liberdade para propor alterações no estilo em que essas músicas são apresentadas. Por exemplo, se uma canção originalmente composta como rock pode ser adaptada para um forró ou outro gênero, de acordo com a proposta cênica. Existe esse espaço de participação na construção editorial das músicas?
Gabriela Colorida: Sim, tivemos bastante liberdade nesse aspecto também. Contamos com um espaço muito confortável para sugerir adaptações e experimentações, inclusive sugestões bastante específicas ou inusitadas. Às vezes, por exemplo, surgia a ideia de que determinada letra se encaixava muito bem na proposta do espetáculo, mas o ritmo original da música talvez não fosse o mais adequado. Nesses casos, levávamos a sugestão ao Wellington e à Ingrid, que eram os responsáveis por tomar as decisões finais.
Isso porque, além da proposta artística, também é preciso considerar as limitações técnicas do espetáculo. Por mais que uma música tenha uma letra e um arranjo excelentes, nem sempre ela se traduz bem no palco, principalmente considerando a estrutura instrumental que temos à disposição. É importante lembrar que, ao contrário dos musicais tradicionais que contam com uma orquestra completa, estamos trabalhando com uma banda ao vivo, sem o uso de música gravada ou playback.
Portanto, a proposta sempre foi encontrar soluções criativas dentro da realidade técnica que temos, e, nesse processo, a colaboração entre elenco, direção e direção musical foi fundamental.
Cadu Freitas: Sim, tivemos essa liberdade de sugerir adaptações, como, por exemplo, transformar uma música originalmente composta como sertanejo em um rock, ou pensar em uma valsa para uma cena específica. A Gabriela, por exemplo, sugeriu uma música para a cena do baile — que inclusive é interpretada por mim — e a escolha foi extremamente acertada. Trata-se de “A Queda”, da Glória Groove. Isso demonstra bem a diversidade de estilos presentes no espetáculo, já que transitamos de Chico Buarque até Glória Groove.
Lembro que, quando ela sugeriu essa música, disse: “Amigo, acho que tem tudo a ver”, e realmente fazia sentido dentro do contexto da cena. O meu personagem, Mercúcio, tem um momento anterior no qual há uma espécie de declaração ao Romeu — sem querer adiantar muito, mas é um spoiler inevitável — e Romeu o rejeita. Em seguida, vem a cena do baile, quando Romeu e Julieta se veem pela primeira vez. Nesse momento, Mercúcio entra cantando justamente essa música, cuja letra tem trechos como “Hoje vai acontecer uma parada aqui”, “venham ver os amigos que eu vou perder, os deslizes que eu vou cometer” e “hoje tem open bar para ver a minha desgraça”. Tudo isso encaixou perfeitamente com o estado emocional do personagem e com o momento dramático da peça.
Essa construção foi muito orgânica. Cada sugestão foi sendo testada e ajustada conforme o desenvolvimento do espetáculo, e no fim ficamos realmente felizes com o resultado.
Na descrição do espetáculo, é mencionado que se trata de uma história de amor em tempos de barbáries ideológicas, o que sugere um viés político. Gostaria de saber como a política é representada na peça e como esse tema evoluiu ao longo das diferentes montagens, considerando que o país passou por processos eleitorais e outras transformações sociais nesse período.
Gabriela Colorida: Desde o início, para mim, é impossível fazer arte que não seja política. Quando participei da primeira montagem desse espetáculo, eu tinha 17 anos, e minha visão política e social era muito diferente da que tenho hoje. Hoje, por exemplo, ao assumirmos que a mãe da Julieta é uma mãe ausente, isso por si só já é uma posição política. Estamos falando sobre o machismo estrutural que impõe às mulheres a obrigação de serem perfeitas e impecáveis. Também falamos sobre a desigualdade de classes, quando mostramos quem detém o poder e oprime quem está embaixo, com atitudes como: “Você vai fazer o que eu estou mandando porque eu estou te pagando.”
Além disso, trazemos nossas próprias bandeiras para o palco. O elenco é, majoritariamente, composto por pessoas LGBTQIAPN+, com diferentes gêneros e orientações sexuais. Isso também é uma escolha política. E quando abordamos a religião como um possível instrumento de opressão — ou como uma instância que se propõe a resolver tudo — também estamos fazendo uma crítica política.
O espetáculo traz, inclusive, algumas críticas mais diretas a determinadas posturas sociais. Não se trata, necessariamente, de uma crítica partidária, mas de uma discussão sobre ideias de vida. O posicionamento político do espetáculo está presente nos temas que abordamos, nas escolhas que fazemos em cena e na forma como atualizamos a obra a cada nova montagem. Eu acredito que, no momento em que decidimos falar sobre amor na linguagem que utilizamos, já estamos assumindo uma posição política.
Cadu Freitas: Quando o espetáculo trata de um conflito que perdura por gerações entre duas famílias, inevitavelmente abordamos questões ligadas ao patriarcado.
Por exemplo, nesta montagem, o Romeu tem uma mãe, mas não tem pai. E a primeira cena de esgrima ocorre entre duas mulheres. São elementos que, mesmo que não sejam concebidos inicialmente como uma manifestação política explícita, acabam tendo esse efeito. O teatro, por sua própria natureza, é político, ainda que não necessariamente partidário. Portanto, mesmo sem um discurso direto, nossas escolhas cênicas carregam posicionamentos políticos importantes.
Existe alguma cena específica no espetáculo que foi particularmente desafiadora para vocês? Algum momento em que sentiram que realmente precisaram se esforçar intensamente para conseguir realizá-lo da forma desejada?
Gabriela Colorida: Para mim, as cenas da Ama, em sua maioria, apresentam um desafio muito particular. Como mencionei anteriormente, a Ama sustenta parte do alívio cômico da peça, mas também carrega uma forte carga dramática. Especificamente, a cena em que a Ama encontra Julieta morta é a mais exigente. Nela, a transição da comédia para o drama acontece de forma muito rápida.
Além disso, essa cena termina com a execução de uma canção, que é o meu único solo no espetáculo. Isso tudo ocorre logo após uma sequência de acontecimentos muito intensos na trama. Eu já havia interpretado a Ama na montagem anterior, e essa sempre foi a cena de maior carga emocional para mim. É um momento em que saio do palco completamente esgotada.
Começo a cena com leveza, fazendo o público rir, e termino tentando provocar comoção — fazendo-os chorar. Essa transição emocional precisa ser feita com muita precisão. Por isso, considero essa a cena mais delicada que interpreto. Não diria que é a mais difícil, porque acredito que, na atuação, tudo exige empenho constante. Quando nos acomodamos, deixamos de nos desenvolver. Mas, sem dúvida, esse é o momento mais sensível e intenso para mim.
Cadu Freitas: Para mim, os momentos mais desafiadores não estão necessariamente em uma cena específica, mas em fragmentos de cenas. Apesar de eu ter mencionado que o Mercúcio se aproxima muito da minha personalidade, há um ponto da narrativa em que ele passa por uma rejeição profunda e, a partir disso, começa a agir de forma mais ríspida, até mesmo babaca, por assim dizer.
E, pessoalmente, eu — enquanto ator, enquanto Cadu — tenho dificuldade em verbalizar algumas das coisas que o Mercúcio diz, justamente porque são falas duras, que não são agradáveis de se ouvir ou dizer. Então, precisei trabalhar muito essa separação entre mim e o personagem, porque, apesar da proximidade, ele ainda é alguém distinto de mim.
Esse processo me levou a uma compreensão muito importante: o Mercúcio, acima de tudo, é real. Ele representa a complexidade humana. A gente vive em uma sociedade que ainda tende a ver as pessoas de forma muito binária — ou são boas, ou são más; ou é certo, ou é errado. Mas a realidade é que todos nós transitamos entre essas polaridades o tempo todo.
Não existe alguém completamente bom ou completamente ruim. E essa trajetória do Mercúcio me ensinou muito sobre isso. Ele é um personagem que mostra suas dores, suas feridas, suas contradições — e faz isso de maneira crua, sem filtros. Por mais que seja difícil interpretar algumas dessas falas mais impulsivas e inconsequentes, é justamente essa imperfeição que o torna tão humano.
Já que a gente falou sobre as partes mais desafiadoras, queria saber agora qual é, para vocês, o verdadeiro coração do espetáculo. Aquela cena ou aquele momento que, se fosse possível condensar E[cs]xtas[y]e em uma única parte, vocês diriam: “É isso aqui. É essa cena que carrega a alma da peça, que diz tudo que a gente quer comunicar”.
Gabriela Colorida: Para mim, o coração do espetáculo é, sem dúvida, a cena do baile. Porque é justamente ali que tudo começa a acontecer. A cena já começa com o Mercúcio cantando — e, a partir daí, a gente mergulha em um momento em que todos os núcleos da peça estão presentes. Sabe aquela sensação de primeiro capítulo de novela, onde você é apresentado a todos os personagens e já entende que vai ter treta, romance, conflito? É exatamente isso.
Nessa cena, a gente vê a família da Julieta, vê a negociação do casamento dela acontecendo, vê a Julieta se apaixonando perdidamente pelo Romeu — e o mais curioso: o Romeu foi ao baile apaixonado por outra pessoa. A gente vê o Mercúcio, que acabou de se declarar para o melhor amigo e está completamente devastado porque o Romeu nem percebeu ou ignorou. Tem também o primo da Julieta, que sente o cheiro de confusão no ar quando percebe que alguém da outra família está ali. E tem, claro, a Ama, que transborda cuidado e carinho pela Julieta.
Então, para mim, essa cena é o momento em que a gente entende tudo. A gente saca a história inteira ali e já sente que vai dar ruim no final. Sempre brinco com o pessoal dizendo: “Gente, vamos caprichar nessa música, porque essa cena é o trailer do espetáculo”. Se a gente fosse fazer um recorte para mostrar o que é o E[cs]xtas[y]e, seria o baile.
É uma cena com muita informação, com diálogos paralelos, com camadas emocionais e ainda tem coreografia — maravilhosa, por sinal, feita pelo Thiago Esposito, nosso coreógrafo incrível. E a trilha também é muito potente: são várias músicas costuradas que constroem essa energia única. E o mais bonito de tudo é que todos os personagens estão presentes. Para mim, essa cena é o espetáculo inteiro condensado. Então, para mim, essa cena do baile é realmente o ponto onde o E[cs]xtas[y]e acontece.
Cadu Freitas: Tem uma outra que eu também considero muito, que é como se fosse uma continuação emocional da cena do baile — que é a cena do Bohemian Rhapsody. Ali, pra mim, é o começo do fim. É quando as coisas que foram plantadas ali no baile começam a desmoronar de verdade.
Essa cena carrega uma carga emocional muito forte, porque é quando a gente começa a entender o peso das escolhas feitas pelos personagens. Dois deles, especificamente, percebem que colocaram a própria vida nas mãos de outras pessoas — por orgulho, por medo, por bobagem mesmo — e isso trouxe consequências não só para eles, mas para toda a comunidade ao redor.
É uma cena que mostra arrependimento, mostra a dor real de quem entendeu que já não dá mais pra voltar atrás. E musicalmente, ela é muito forte também. A montagem que a gente faz de Bohemian Rhapsody tem um impacto enorme, porque a música já carrega uma dramaticidade absurda, e quando a gente junta isso com a encenação, com o corpo, com o olhar, com os silêncios... vira um momento muito potente mesmo.
Então, se o baile é o começo do encantamento, o Bohemian é o momento em que o encanto vira tragédia — e aí a gente entende o quanto essa história fala sobre escolhas, sobre consequências, e sobre como o amor também pode ser atravessado pela dor, pelas estruturas sociais e pelos limites que o mundo impõe.
Gabriela Colorida: Eu gosto muito da cena do Bohemian Rhapsody. Eu costumo dizer que o baile é tipo aquele momento de “ih, acho que vai dar ruim”, e o Bohemian é o “deu ruim” mesmo. É quando a gente já não tá mais só no flerte com o caos, sabe? Já tá mergulhado nele.
E é importante falar que Bohemian Rhapsody é uma música do Queen, né? E como a gente não usa músicas em inglês no espetáculo, a versão que o público escuta é uma versão em português — que, inclusive, foi feita pelo Cadu.
Cadu Freitas: Foi um trabalho de versionista mesmo, como a gente vê bastante em musicais que vêm da Broadway para o Brasil. Eles precisam adaptar a letra, não só traduzir, mas fazer ela funcionar musicalmente e dramaticamente na nossa língua, no nosso contexto. Foi desafiador, viu? Porque Bohemian Rhapsody já tem toda uma carga emocional, né? É uma música que trabalha com muitas camadas de emoção, de imagem, de ritmo. Então eu tentei manter as sensações que a música original traz, mas ao mesmo tempo colocar isso dentro da realidade do espetáculo, da nossa dramaturgia.
Não foi uma simples tradução, foi uma transposição mesmo — pegar aquele universo do Queen e colocar dentro do nosso E[cs]xtas[y]e, com nossos personagens, com nossa narrativa. E acho que funcionou muito bem. Porque ali a música vira uma espécie de catarse coletiva, é quando os personagens, cada um à sua maneira, estão quebrados. É denso, é bonito, é dolorido. Mas é muito verdadeiro.
E para fechar, se vocês pudessem escolher o que o público vai sentir ao sair do teatro, qual seria esse sentimento, essa emoção ou pensamento? O que vocês gostariam que ficasse ressoando nas pessoas depois de assistirem ao espetáculo?
Gabriela Colorida: Sendo muito clichê, eu vou falar que eu espero que o público saia em êxtase mesmo. Porque eu acho que não dá pra definir uma única emoção, sabe? O espetáculo provoca muitas sensações diferentes. A nossa proposta é exatamente essa — mexer com tudo, fazer o público rir, se emocionar, se apaixonar, refletir, se inquietar... Então, pra mim, se as pessoas saírem em êxtase e com vontade de ver mais, de ouvir mais, de viver mais disso, a gente cumpriu o nosso papel.
Cadu Freitas: Não querendo copiar ela, mas complementando, tem uma frase no espetáculo — já que a gente tá cheio de spoilers aqui — que diz que o amor é mesmo um êxtase… e é uma droga. E eu acho que é isso que eu gostaria que as pessoas levassem. Que saíssem com essa dualidade na cabeça: o êxtase de sentir o amor com toda sua potência, mas também essa consciência de que o amor, às vezes, nos bagunça, nos vicia, nos tira do eixo. Porque amar é lindo, mas também dói. E o nosso espetáculo fala disso com muita verdade.
O espetáculo E[cs]xtas[y]e – Uma história de Romeu e Julieta apresenta uma releitura contemporânea do clássico shakespeariano, ancorada em elementos atuais e numa construção cênica colaborativa. Ao incorporar referências musicais diversas e permitir que o elenco influencie diretamente aspectos da dramaturgia, a montagem se destaca pelo diálogo com o presente e pelo envolvimento afetivo dos artistas com a obra.
A entrevista com os atores Gabriela Colorida e Cadu Freitas revela não apenas os bastidores do processo criativo, mas também o compromisso do grupo em tratar temas políticos e sociais com responsabilidade e autenticidade. A escolha por uma abordagem crítica, porém acessível, reforça o caráter formativo e provocador do espetáculo.
Com um elenco diverso e uma proposta estética dinâmica, E[cs]xtas[y]e busca deixar no público não apenas a impressão de uma história conhecida, mas a experiência sensorial e reflexiva de uma obra viva. A peça convida à escuta, ao questionamento e, sobretudo, à valorização da potência transformadora do teatro.