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Teatro goiano mostra força com adaptação de Romeu e Julieta

E[cs]xtas[y]e – Uma história de Romeu e Julieta impressiona pela criatividade na releitura do clássico, pela força estética e pela entrega dos atores.

Texto por: Iasmin Feitosa

TRAMA

O espetáculo E[cs]xtas[y]e – Uma história de Romeu e Julieta, do Fábrica Grupo de Teatro, propõe uma recriação ousada do clássico shakespeariano. Ao invés de seguir uma linha narrativa única e linear, a montagem apresenta três Romeus e três Julietas vivendo diferentes estágios do amor: o encontro, a escolha e a eternidade. Essa fragmentação não só revitaliza a obra original, como também permite que o espectador experimente o amor de forma mais complexa — como se a peça oferecesse múltiplas janelas para observar um mesmo sentimento em transformação.

A escolha por dividir os protagonistas em trios é potente. Cada versão do casal oferece uma perspectiva distinta da paixão: o frescor do primeiro olhar, a coragem de se entregar, e o sofrimento da perda ou da idealização. Em vez de um casal trágico que morre por amor, o público é convidado a ver Romeu e Julieta como múltiplas possibilidades — não como vítimas de um destino cruel, mas como sujeitos ativos em seus próprios caminhos afetivos. Isso transforma a história em algo mais próximo, mais humano e menos idealizado.

O texto original de Shakespeare é preservado em alguns momentos, mas aparece entrelaçado a falas contemporâneas e trechos musicais que constroem pontes entre o passado e o presente. Assim, o espetáculo não busca apenas reinterpretar a história, mas reinventá-la em um contexto atual, que dialoga diretamente com os dilemas afetivos da juventude moderna. Essa atualização respeitosa, porém destemida, é um dos grandes trunfos da montagem. Além disso, o espetáculo propõe uma experiência sensorial intensa. A estrutura não é apenas narrativa, mas também emocional: a peça avança conforme o sentimento evolui, e o público é levado a sentir junto com os personagens. A dramaturgia é construída como uma colagem afetiva, que privilegia a sensação e a intensidade dos afetos — mais do que a lógica sequencial da trama. Isso contribui para uma experiência teatral envolvente e, em muitos momentos, arrebatadora.

COMPOSIÇÃO

A estética da peça é um espetáculo à parte. O figurino chama atenção pela originalidade e pela forma como rompe com convenções teatrais mais rígidas. Ao invés de esconder as tatuagens dos atores, por exemplo, a montagem opta por destacá-las — algumas roupas, inclusive, parecem ter sido desenhadas para realçar as marcas corporais. Essa escolha valoriza a identidade dos artistas e reforça a ideia de que as histórias de Romeu e Julieta podem habitar qualquer corpo, em qualquer tempo. Há algo de muito libertador nesse gesto.

O cenário é minimalista, mas eficaz. O palco se transforma com a iluminação e com os próprios corpos em movimento, criando atmosferas distintas sem a necessidade de grandes mudanças físicas. A composição visual é guiada por uma lógica de sensações e significados simbólicos, e os elementos cênicos são usados com precisão — nunca há excesso, mas também nunca falta o necessário. A encenação é coreografada de forma fluida, com transições suaves entre cenas e momentos de impacto visual que ficam gravados na memória.

Um dos pontos mais marcantes da composição cênica é o trabalho sonoro, conduzido por uma banda ao vivo que atua como narradora sensorial da história. As músicas vão de clássicos do rock nacional a sucessos sertanejos, e funcionam como extensão do drama vivido pelos personagens. O uso da trilha sonora é tão integrado à narrativa que, em muitos momentos, a banda parece fazer parte da cena — não apenas acompanhando, mas comentando e intensificando as emoções. Há uma qualidade quase cinematográfica nesse uso do som, que amplifica a experiência do público.

A iluminação, por sua vez, tem papel fundamental na construção do clima. Cada fase do amor vivida pelos casais é marcada por cores e intensidades específicas, o que ajuda a guiar o espectador mesmo nos momentos mais abstratos. A luz funciona como uma espécie de bússola, apontando para onde deve ir o nosso olhar — e o nosso sentimento. A junção entre luz, som, figurino e atuação cria uma encenação coesa e sensorialmente rica, que demonstra um alto nível de elaboração estética.

PERCALÇOS

Apesar da força estética e narrativa do espetáculo, alguns contratempos comprometem, ainda que pontualmente, a fruição plena da peça. O primeiro e mais perceptível deles é o volume do som da banda, que em alguns momentos se sobrepõe às falas dos atores. Esse desequilíbrio dificulta a compreensão de partes importantes do texto e, consequentemente, enfraquece a potência dramática de algumas cenas. O som ao vivo é um recurso poderoso, mas exige equilíbrio fino entre emoção e inteligibilidade.

Além disso, o uso do humor, embora muito bem-vindo em vários momentos, acaba não sendo bem dosado ao longo da montagem. As piadas iniciais funcionam com grande eficácia: ajudam a aproximar o público dos personagens, quebram o gelo e estabelecem uma cumplicidade quase imediata com a plateia. No entanto, à medida que a narrativa avança para estágios mais densos do amor — especialmente na fase da “eternidade”, marcada por perdas e despedidas —, o tom cômico parece destoar do que está sendo vivido em cena. Em determinados pontos, essa dissonância entre humor e drama gera um efeito de quebra de clima. O espectador, que estava mergulhado na dor dos personagens, é repentinamente puxado para uma reação risível que parece não combinar com o momento. Isso pode enfraquecer o impacto emocional da cena e prejudicar a curva dramática construída até então. Uma revisão cuidadosa do uso do humor nos momentos finais poderia trazer mais coerência ao percurso emocional da peça.

Também se percebe certa irregularidade na projeção vocal dos atores. Embora a maioria tenha boa presença de palco, nem todos conseguem manter a mesma intensidade vocal durante toda a apresentação — o que se torna mais evidente nos momentos em que a trilha sonora exige esforço extra para ser sobreposta. A solução pode estar tanto em ajustes técnicos quanto na reformulação de algumas marcações cênicas que exigem maior esforço físico dos intérpretes, comprometendo sua emissão vocal.

DESTAQUE

Dentre as muitas qualidades do espetáculo, a atuação de Marcelo Di Castro é, sem dúvida, um dos pontos altos. O ator começa a peça interpretando Teobaldo, personagem secundário na narrativa original, mas que aqui ganha uma força cênica incomum. Desde sua primeira aparição, Marcelo domina o palco com uma presença singular, principalmente por meio de sua voz — firme, bem projetada e com nuances dramáticas impressionantes. Sua performance já seria memorável apenas nesse papel.

No entanto, o que realmente marca o espectador é a transição de Teobaldo para o terceiro Romeu. A mudança não é apenas uma troca de figurino ou personagem: é uma transformação emocional e corporal que impressiona pela fluidez e pela intensidade. Marcelo consegue sustentar dois papéis tão distintos com naturalidade, mantendo a coerência emocional da história e, ao mesmo tempo, surpreendendo com a profundidade de sua entrega. O ponto culminante de sua atuação é a cena em que o terceiro Romeu interpreta “De quem é a culpa?”, de Cristiano Araújo e Marília Mendonça. A escolha da canção, originalmente sertaneja, surpreende pelo modo como é ressignificada em cena: em vez de seguir pelo caminho do exagero ou da caricatura, Marcelo entrega uma performance marcada por delicadeza e dor contida. Sua voz, combinada a uma presença cênica impactante, transforma o momento e nos faz emocionar com o peso da cena, que sintetiza a essência trágica e, ao mesmo tempo, poética da montagem. É um exemplo claro de como o espetáculo consegue extrair potência simbólica da música popular brasileira, atribuindo-lhe novas camadas de sentido no contexto trágico da montagem.

Mais do que uma simples homenagem, a interpretação do ator transforma a canção em ferramenta dramatúrgica, aprofundando a trajetória emocional do personagem. Marcelo Di Castro mostra que o teatro também vive na sutileza, na entrega sincera e na capacidade de emocionar sem grandes artifícios — apenas com uma canção bem escolhida, um corpo atento e uma voz que sabe onde quer tocar.

DESFECHO

Ao final da montagem, a sensação que fica é a de ter vivido uma experiência rara no teatro contemporâneo: uma peça que não apenas conta uma história, mas que também provoca o espectador a sentir, refletir e se reconhecer. E[cs]xtas[y]e – Uma história de Romeu e Julieta é mais do que uma adaptação: é uma reinvenção sensível e provocadora de um clássico, que respeita suas origens ao mesmo tempo em que ousa transformá-lo para os dias de hoje.

O espetáculo acerta ao dialogar com as emoções humanas de maneira direta, sem medo do exagero ou do sentimentalismo. Ele se permite ser intenso, apaixonado, dramático — como o próprio amor que tenta retratar. Em tempos de distanciamento emocional e ironia cínica, é revigorante ver uma obra que se entrega com tanta sinceridade ao sentimento que move sua narrativa. É teatro de risco, feito com coragem e autenticidade.

Apesar dos deslizes pontuais, a montagem se sustenta com força e oferece ao público uma experiência marcante. Os momentos de beleza estética, musicalidade apurada e entrega dos atores compensam com folga qualquer ruído técnico. E mais: mostram que o grupo está em constante busca por aprimoramento, sem medo de testar novos formatos.

Vale a pena assistir. Para quem busca um espetáculo ousado, E[cs]xtas[y]e é um convite irrecusável. Com entrada gratuita e acessibilidade garantida, a peça cumpre não apenas seu papel artístico, mas também social: democratiza o acesso ao teatro de qualidade e reafirma a força da cena goiana como espaço de inovação.

 

 

IasminIasmin Feitosa é estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Goiás e estagiária de comunicação no Centro Cultural UFG. Atua com produção de conteúdo e cobertura jornalística de eventos culturais.

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