
Quando a Literatura Vira Movimento
O espetáculo de dança O Crivo propõe uma travessia poética pelo ser-tão interior de cada indivíduo.
Texto por: Iasmin Feitosa
O espetáculo O Crivo, do Ateliê do Gesto, é uma criação coreográfica inspirada na obra Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa. Com direção de João Gross e colaboração de Daniel Calvet, a montagem propõe uma reflexão sobre a condição humana por meio da dança contemporânea, dialogando com a literatura e a música erudita brasileira. Em cena, dois intérpretes constroem relações que se revelam a partir da travessia de um sertão simbólico, atravessado por gestos, pausas e movimentos sutis.
A proposta do espetáculo é deslocar o sertão geográfico para um território existencial, focado no vazio interior e nas experiências individuais. A trilha sonora, que inclui composições de Villa-Lobos, Francisco Mignone e Arthur Moreira Lima, contribui para a criação de uma atmosfera que combina elementos de melancolia e resistência, potencializando a dramaturgia corporal dos intérpretes. O Crivo estrutura-se, assim, como uma jornada de autoconhecimento e partilha silenciosa.
Ao evitar a ilustração direta dos contos de Guimarães Rosa, a obra prioriza a criação de imagens simbólicas e sensações abertas à interpretação do público. A dança se articula como linguagem principal para explorar temas como a solidão, o vazio, a convivência e a permanência do que é essencial. Com uma dramaturgia construída a partir da escuta e da depuração dos materiais cênicos, O Crivo estabelece uma relação de sensibilidade e atenção com a plateia.
Nesta entrevista, João Gross e Daniel Calvet compartilham os bastidores do processo criativo de O Crivo. Eles abordam a concepção do espetáculo, a escolha dos contos de Guimarães Rosa, a construção da dramaturgia corporal e a integração com a música erudita brasileira, revelando as decisões que moldaram a linguagem cênica da obra.
Centro Cultural UFG: Como surgiu a ideia de transformar as Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, em um espetáculo de dança?
João Gross: A ideia nasceu de uma inquietação minha sobre como dialogar, em movimento, com certas perguntas que a vida insiste em nos lançar. Quando me deparei com Primeiras Estórias, senti que havia ali uma matéria potente — um tipo de linguagem que não se prende ao óbvio e que carrega uma carga simbólica muito próxima daquilo que o corpo pode expressar sem palavras. Guimarães Rosa, com sua escrita labiríntica e profundamente humana, foi o ponto de partida para essa travessia. E foi dessa escuta sensível da literatura que nasceu O Crivo — um bordado de estórias, gestos e silêncios.
Daniel Calvet: A obra de Guimarães sempre foi objeto de pesquisa e investigação pessoal para o João Gross, que assina a direção de O Crivo. Ele sempre se sentiu atraído pelos mistérios que a obra evoca, assim como pela complexidade dos contos de Guimarães, que fazem uso de uma linguagem popular, mas de maneira extremamente refinada.
O espetáculo propõe um “ser-tão” existencial, mais simbólico do que geográfico. Como essa ideia foi incorporada aos gestos e movimentos dos intérpretes?
João Gross: O sertão, para mim, sempre foi menos um lugar e mais um estado de espírito. É o espaço entre, o vazio fértil, o silêncio que antecede a palavra. Em cena, traduzimos esse “ser-tão” pela escuta do tempo dilatado, pela procura desse lugar do sozinho, pela repetição como forma de insistência, pelo peso e leveza do corpo que busca apoio, que hesita, que cai. Eu e Daniel procuramos dançar como quem atravessa uma paisagem interna, uma geografia íntima: por vezes seca, por vezes fértil, mas sempre profunda.
Daniel Calvet: Pensamos na ideia desse sertão pessoal, íntimo, esse vazio dentro de cada um que se desenha como uma geografia a ser habitada. Menções e referências ao sertão geográfico são colocadas como elementos cênicos, mas como suporte imagético para que se perceba o sertão de cada um.
Há uma fusão entre a literatura, a música erudita brasileira e a dança contemporânea. Como se deu o processo de escolha e integração dessas linguagens?
João Gross: Foi um processo de escuta e intuição. A escolha das músicas de Villa-Lobos, Mignone e Arthur Moreira Lima surgiu do desejo de costurar sonoridades que ecoassem o Brasil profundo que Rosa nos apresenta. Essas composições, com suas nuances entre o erudito e o popular, trouxeram uma camada emocional muito forte. A literatura de Rosa nos ofereceu imagens e tensões, e na dança buscamos o gesto necessário para dar forma a tudo isso. Integramos essas linguagens como quem monta um quebra-cabeça invisível: testando, errando, respirando junto.
Daniel Calvet: O João gosta de trabalhar a partir de referências literárias desde o início da sua carreira coreográfica. A partir dessa afinidade, ele propõe a construção de uma leitura mais íntima das obras escolhidas, para além da pura representação enquanto roteiro cênico. Dessa forma, ele vai tecendo um agrupamento de afetos que ajudam a materializar as sensações evocadas pela obra. Música, luz e movimentos vão dando suporte imagético para transportar o público ao universo de Guimarães, onde as questões de cada conto se desdobram e se conectam num bordado fluido. A dança se faz porque é a arte que estudamos por toda uma vida e o objeto de estudo criativo no Ateliê.
A trilha sonora traz compositores como Villa-Lobos e Mignone. Que papel a música desempenha na construção narrativa e emocional do espetáculo?
João Gross: A música é uma parceira delicada do espetáculo. Ela não está ali como pano de fundo, mas como outra camada sensível que atravessa a obra. Cada nota, cada silêncio, orienta nosso tempo interno e nos guia pelo caminho da emoção e da escuta do outro. A música é uma paisagem, um terreno por onde os sentidos transitam. Ela intensifica os vazios, colore os silêncios, sustenta a melancolia e o êxtase. É um espelho sonoro da dramaturgia que estamos dançando.
Daniel Calvet: A música ajuda a criar temperaturas e tensões para que a partitura coreográfica se desenvolva, colaborando com a percepção do ritmo da obra. A plateia se deixa conduzir pelos estados que a música propõe, em comunhão com os estados e imagens que os corpos dos intérpretes constroem, complementando a dramaturgia.
A dramaturgia fala de um “vazio” e da solidão compartilhada. Como esses sentimentos são explorados corporalmente no palco?
João Gross: O vazio em O Crivo não é ausência, é presença densa. Ele aparece nas pausas, nos gestos que não se completam, no toque, na linha coreográfica que vai se tecendo. Trabalhamos o corpo como um território de espera, de escuta. A solidão compartilhada surge quando um corpo se aproxima do outro sem invadi-lo, quando há uma tentativa de encontro mesmo na diferença. É uma dança que respira junto, que dialoga, que acolhe o não dito.
Daniel Calvet: Os dois corpos em cena estão sempre unidos. Mesmo que em dissonância, experimentam uma travessia que nunca se desconecta. Mesmo se distanciando fisicamente, um depende profundamente do outro para agir. Cria-se uma relação que não se explica muito bem como começa nem se terá fim, mas o foco é o momento do encontro, dessa travessia.
Durante o processo de criação, houve momentos em que o espetáculo tomou caminhos inesperados? Houve algum “crivo” interno, como sugere o título?
João Gross: Com certeza. A criação de O Crivo foi atravessada por muitos caminhos, descobertas, edições e recomeços. O próprio nome já nos provocava: o que fica? O que passa? Tivemos que deixar muita coisa para trás — ideias que pareciam boas, mas que não pertenciam à verdade do trabalho. Esse "crivo" interno é parte do processo criativo: uma seleção intuitiva e rigorosa do que realmente importa. E, às vezes, o que resta é apenas o essencial.
Daniel Calvet: Durante as centenas de apresentações, sentimos vontade de fazer mudanças: diminuir elementos cênicos como luz, trilha e figurino. Assim, percebemos que surgia uma nova possibilidade da obra, que configurava um novo espetáculo. Dessa forma, estrearmos Cru, que é a partitura de movimento de O Crivo, porém com a cena limpa, toda executada apenas com sons da natureza.
Os intérpretes constroem relações ao longo da peça. Como se desenvolve esse diálogo entre os corpos em cena?
João Gross: O diálogo entre nós acontece em um nível muito sensível. É um encontro que vai além da técnica tradicional — é escuta pura (uma outra camada técnica). Dançamos com o que o outro oferece, no tempo do outro. Não é um pas de deux tradicional, mas uma dança a dois, um diálogo corporal cheio de lacunas, de esperas, de sobreposições. Às vezes somos espelho, às vezes sombra, reflexo. E nesse jogo nasce uma relação que muda a cada apresentação. Apesar de ser uma coreografia extremamente partiturada, ela tem espaço para a presença construída também com a plateia.
Daniel Calvet: Tecemos, a partir do contato físico, um bordado coreográfico onde o espaço entre tem mais importância do que os pontos de contato. Pensamos a construção desses vazios como o verdadeiro assunto que criamos com nossos corpos para ser observado pela plateia.
Quais foram os principais desafios em traduzir a densidade poética de Guimarães Rosa para a linguagem do movimento?
João Gross: A principal questão foi não tentar ilustrar nenhum conto. Trabalhamos com Primeiras Estórias especificamente em torno de três contos: A Terceira Margem do Rio, Nada e a Nossa Condição e O Espelho. Escolhemos esses contos por conterem uma linha de proposta que se construía a partir de imagens poéticas, provocando questões sobre as quais era possível vagar e caminhar. A densidade de Rosa está no não dito, no entrelinha. A dança também tem essa potência. Foi necessário instaurar um novo caminho de pensamento para olhar o corpo e depurar as sensações e percepções que a obra provocava. A criação coreográfica foi um processo de escuta e decantação — como se tivéssemos que "ruminar" Rosa até o corpo encontrar sua forma de dizer.
Daniel Calvet: Tivemos que nos limpar de antigos “vícios” de movimento que trazíamos da nossa trajetória como bailarinos para construir um novo corpo — um corpo que falasse como a escrita de Guimarães: um mover mais cru, empoeirado, torcido como galhos secos e entrecortado como as pronúncias das palavras caipiras.
Como o público tem reagido ao espetáculo? Há espaço para diferentes leituras e emoções dependendo da trajetória de quem assiste?
João Gross: Sim, e isso é uma das maiores belezas de O Crivo. Já ouvimos relatos de pessoas que choraram ao lembrar do pai, de amores, ou por se reconhecerem na solidão dos intérpretes. Cada espectador traz sua travessia. A obra abre espaços simbólicos, não entrega respostas prontas. E essa abertura permite múltiplas leituras, o que é muito rico. Não queremos conduzir o olhar, mas provocar ressonâncias.
Daniel Calvet: Sim, a obra reverbera de muitas formas. Ela possui muitas camadas de interpretação que conectam cada espectador ao seu repertório de vida. Construímos a narrativa cênica mais para conduzir o público a estados de atenção do que para explicar ou determinar o significado de cada momento. A obra se completa com a percepção do outro. Já levamos O Crivo a oito países e regiões remotas do Brasil e temos a experiência concreta de que é uma obra que toca plateias de qualquer contexto cultural.
O espetáculo fala sobre o que muda e o que permanece em nós. Ao fim da jornada de O Crivo, o que permanece em vocês, criadores e intérpretes, depois dessa travessia?
João Gross: Depois de dez anos, o que permanece é a certeza de que a arte é um lugar de transformação constante. O Crivo nos ensinou sobre o tempo, sobre a escuta, sobre a delicadeza de permanecer aberto ao outro. O espetáculo mudou, nós mudamos. Mas algo essencial resistiu: a busca sincera por criar com verdade, afeto e coragem. O Crivo segue como um espelho — às vezes opaco, às vezes nítido — do que somos e do que ainda podemos vir a ser.
Daniel Calvet: Essa obra mudou nossas vidas, nos constituiu enquanto grupo, nos moveu a amadurecer como artistas e a acreditar que persistir é o caminho mais acertado. Ela nos ensinou que, na persistência, brota sensibilidade em terrenos áridos, e que todos são capazes de acessar o sensível para além de qualquer julgamento. Como diz Guimarães: "Aquilo que não havia, acontecia."
O Crivo revela-se não apenas como um espetáculo de dança, mas como uma profunda experiência sensorial e simbólica, capaz de traduzir em gestos e silêncios as complexidades da existência humana. Inspirado pela escrita de Guimarães Rosa, o trabalho do Ateliê do Gesto propõe um espaço de escuta e atravessamento, em que a palavra cede lugar ao corpo como veículo de memória, ausência e transformação.
Ao longo da conversa com João Gross e Daniel Calvet, fica evidente o rigor artístico e a delicadeza do processo criativo que sustenta a obra. A construção do espetáculo, permeada por camadas de música, literatura e movimento, resulta em uma dramaturgia aberta, que se oferece ao público como campo fértil para múltiplas interpretações e ressonâncias emocionais.
Mais do que uma adaptação literária ou uma encenação coreográfica, O Crivo é um convite a adentrar territórios íntimos, onde o ser-tão simbólico de cada um é habitado em sua plenitude. Um trabalho que, mesmo após uma década de trajetória, segue provocando encontros, reflexões e sensibilidades, reafirmando a potência da arte como espaço vivo de transformação.
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