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Exposição “Não Vou Negar” ocupa CCUFG e propõe diálogo entre arte e sertanejo

A exposição “Não Vou Negar: artes visuais, território e música sertaneja” ocupa o Centro Cultural da UFG e propõe uma interação inédita entre arte contemporânea e o universo da música sertaneja. 

 

Por Iasmin Serafim

A exposição Não Vou Negar: artes visuais, território e música sertaneja ocupa, a partir do dia 13 de maio de 2025, o Centro Cultural da Universidade Federal de Goiás (CCUFG), com entrada gratuita e classificação indicativa de 12 anos. Com curadoria de Paulo Duarte-Feitoza, a mostra propõe um encontro entre artes visuais contemporâneas e a complexa paisagem sonora da música sertaneja, reunindo obras de 30 artistas — entre nomes consagrados e emergentes — cujas produções abordam, com sensibilidade e crítica, temas como memória, identidade, pertencimento e território. O título da exposição é emprestado da canção de Zezé Di Camargo & Luciano e sinaliza a potência afetiva e simbólica do universo sertanejo, sem deixar de questioná-lo.

O recorte curatorial não se limita à representação da música sertaneja, mas se aprofunda em seus desdobramentos sociais, políticos e culturais. A exposição coloca em evidência como esse gênero musical, com raízes no interior do Brasil, carrega consigo tanto os traços de uma tradição quanto os conflitos de um país em transformação. Nesse percurso, destaca-se o diálogo entre artistas de diferentes gerações e linguagens, como Siron Franco, Antônio Poteiro, Samuel Costa, Benedito Ferreira, Cássia Nunes e Verônica Santana, cujos trabalhos ora homenageiam, ora tensionam os códigos e afetos associados ao sertanejo.

A mostra também se propõe como um espaço de escuta e de visibilidade para outras vozes dentro do sertanejo, como no caso da instalação de Benedito Ferreira com versos de Marília Mendonça e Maiara & Maraísa, ou da série de Verônica Santana que representa duplas de travestis cantoras. Há ainda os registros de infância e memória de artistas como Emilliano Freitas e Elinaldo Meira, e as pinturas-lameiras de Rossana Jardim, que recuperam a poética da estrada. Cada obra contribui para expandir os sentidos do sertanejo para além da música, transformando-o em campo de experimentação estética, crítica cultural e reinvenção simbólica.

A seguir, convidamos você para uma conversa com o curador da exposição: Paulo Duarte-Feitoza. Em entrevista, o profissional fala sobre seu processo criativo, o papel da música sertaneja e a importância de aproximar arte contemporânea e cultura popular sem hierarquias ou preconceitos. A entrevista é um convite para aprofundar o olhar sobre a exposição e refletir sobre os muitos sertanejos que habitam o Brasil contemporâneo.

 

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Paulo Duarte-Feitoza - Curador da Exposição

 

CCUFG: Como surgiu a ideia da exposição Não vou negar?

PAULO DUARTE-FEITOZA: Essa exposição nasceu há mais de um ano. Aqui eu preciso mencionar o Benedito Ferreira e o Freitas, que são dois artistas e amigos, com quem, em algumas conversas, começamos a pensar sobre a música sertaneja. E, em um dado momento, nós decidimos que isso precisava se converter numa exposição. A partir desse momento que começamos a fazer algumas articulações — primeiro, para escrever um projeto. Essa é uma exposição que foi encaminhada, enquanto projeto, para a PNAB (Política Nacional de Atenção Básica), para que a gente conseguisse recursos para realizá-la. Ficamos na trave, vamos dizer assim. Quando o projeto não foi adiante, a gente decidiu que precisava executá-lo. 

Acabamos desenvolvendo o projeto de forma coletiva e colaborativa. O resultado que temos hoje aqui, dessa exposição, é fruto de muitos esforços físicos, emocionais e econômicos também — de muitas pessoas.

O nome da exposição Não vou negar faz referência a uma música sertaneja. Como foi fazer essa seleção?

Não vou negar, primeiro, é um dos hits mais reconhecidos. Ela faz parte desse mapa sonoro que atravessa o território de Goiás, mas também o território brasileiro. A ideia do Não vou negar passa, em primeiro lugar, como uma espécie de citação, uma homenagem a essa música tão importante do repertório sertanejo, dos irmãos Zezé Di Camargo e Luciano. Mas ela acaba tendo aqui alguns reflexos, como o de não negar o peso cultural da música sertaneja. Não negar as suas contradições, não negar a sua poética enquanto poder simbólico e estético também.

Então, ela acaba sendo uma reapropriação dessa canção para poder discutir — talvez de fato não negar — o peso cultural que o sertanejo, que a música sertaneja tem não somente no estado de Goiás, mas também no nosso país.

Sobre o sertanejo, o papel dele — houve algum tipo de debate ou resistência na hora de trazer esse tema para o campo das artes?

Eu acho que precisamos assumir que há, sim, um preconceito em relação ao sertanejo, à música sertaneja. Talvez uma das expressões mais populares disso seja o “sertanojo”, como a gente ouve por aí. Portanto, sim, houve uma resistência. Mas eu também preciso dizer que, quando fiz o convite para diversos artistas, todos toparam na hora. Todos ficaram felizes em poder discutir esse assunto. 

Eu acho que, nesse caso, poder discutir e trazer a música sertaneja — que é, de fato, a música mais ouvida no Brasil — para um espaço como esse, institucional, acadêmico, e discuti-la com a seriedade que ela merece, é algo muito relevante. Acho que esse talvez seja um ponto de ineditismo dessa exposição: estar fazendo isso. E essa é uma exposição que discute muitos assuntos. Ela discute, por exemplo, o melodrama, que é o ponto forte da música sertaneja — o amor, o desamor — que também são temas de muitos outros estilos musicais. Isso está no samba, no pagode, no pop… Mas o melodrama, a roça e a cidade, esse conflito... Goiânia é uma metrópole ou ela é uma agrometrópole?

Goiânia é uma cidade na qual, às vezes, a gente vê essas caminhonetes que fazem parte do nosso imaginário, do nosso cotidiano — um tipo de carro que está mais vinculado ao campo do que à cidade. Então, discutimos o campo e a cidade. Discutimos também as questões raciais. O sertanejo romântico, sobretudo nos anos 90, contou com uma série de cantores negros. E a gente também passeia por essa questão. 

Discutimos ainda o feminejo — a presença das mulheres. Como Marília Mendonça e Maiara & Maraisa convocam as mulheres como sujeito e voz ativa nas letras das canções. Então, a exposição está discutindo um pouco de todo esse universo que, de fato, eu diria, nos leva a discutir o Brasil. A gente acaba discutindo Goiás, discutindo a sociedade ao fazer isso. 

Essa exposição tem um ponto muito importante também: estamos discutindo o agronegócio. Discutimos como a ditadura militar também favoreceu ou condicionou a expansão do agronegócio. Ou seja, é uma exposição que está discutindo muitos assuntos de forma bastante ampla, usando a música sertaneja como chave crítica para fazer isso.

Como você fez a seleção dos artistas que estão expondo?

Essa exposição conta com artistas já falecidos. Com artistas que sequer viram o florescer da música sertaneja. Portanto, aqui há um exercício deliberado de anacronismo — mas que é necessário para pensar um pouco a transformação desse território. Temos artistas que já vinham, há mais de três anos, trabalhando com o universo da música sertaneja, e temos artistas que produziram obras especificamente para essa exposição. Então, temos, eu diria, um amplo panorama de artistas — de diversos gêneros, por assim dizer — que nos ajudam a discutir o assunto. Existe essa amplitude, vamos dizer assim. 

Tem um caso também interessante, como o do Samuel Costa, que foi um dos fotógrafos mais importantes goianienses, e nós trouxemos para essa exposição um conjunto de seis fotografias inéditas, que nunca haviam sido exibidas. Essas imagens foram retiradas do acervo do Samuel Costa, que está no Museu da Imagem e do Som — e aqui reforçamos o nosso agradecimento ao museu por ter topado a parceria, e também à Eula Bento, irmã do Samuel, que nos cedeu os direitos para essa exposição.

Nesta exposição, você pretende fazer críticas ao sertanejo no sentido de abordar os estereótipos que o gênero traz?

Com certeza. Eu costumo dizer que essa exposição discute a música sertaneja com seriedade. Aqui, não queremos nem idealização, nem desprezo. É assumir o sertanejo como um pano de fundo que atravessa o nosso território e abordá-lo com profundidade. 

A gente está aqui discutindo muitas questões que vão desde o agronegócio, o melodrama, a participação das mulheres, a participação das pessoas negras, até a música como um todo também. A música sertaneja em suas origens — desde a música caipira, a entrada das polcas e guarânias vindas do Paraguai, passando pelo Mato Grosso —, a transformação nos anos 80 e 90, até o que ela é hoje. Passando pelo sertanejo universitário até esse electrofunk ou electronejo, que fazem parte de uma sociedade em transformação muito rápida. Então, eu acho que, mais uma vez: sim, é claro, existem muitas críticas — mas eu não sei se são críticas no sentido tradicional. Talvez seja mais sobre entender as contradições que se encontram nesse gênero. Assim como em muitos outros, não é mesmo? 

Mas talvez, no caso do sertanejo, isso ganhe mais destaque porque sempre houve uma certa distância — sobretudo em relação a outras paisagens sonoras, como a música popular brasileira, o samba, entre outras. Sempre houve uma distância maior. E eu acho que faz muito sentido fazer uma exposição como essa aqui, em Goiás, em Goiânia — uma cidade que se transformou na Meca do sertanejo nos últimos anos. É possível, e é necessário, pensar esse estilo musical através das artes — através da arte contemporânea. E é isso que nós estamos fazendo aqui.

O sertanejo vai desde o tradicional, o “raíz”, até o sertanejo universitário. Como você construiu essas nuances do sertanejo para quem está vindo aqui e quer entender?

Essa não é uma exposição sobre a história do sertanejo. Acho importante deixar isso bem claro. É uma exposição que discute esse universo, tangenciando muitos assuntos. E o sertanejo, por exemplo, carrega contradições curiosas. 

O próprio sertanejo universitário é um gênero que nasce junto com a expansão das universidades no governo Lula, por exemplo. E eu acho que talvez o campo progressista não soube dialogar com esse universo. São essas contradições que nós precisamos pensar e trazer à tona. Acho que é preciso descer do pedestal e lidar com essa realidade cultural que é muito nossa — sem desprezo, mas compreendendo suas complexidades.

É impossível andar por Goiânia e não ouvir música sertaneja. Ela é quase um pano de fundo sonoro constante. E é isso que a gente está trazendo para cá: discutir esse universo com seriedade e profundidade.

Teve algum núcleo da exposição que, particularmente para você, mexe mais? 

Acho que a exposição como um todo, para mim, é muito especial. Eu não saberia escolher um único eixo, porque todos eles são, de fato, importantes. 

Mas talvez eu possa destacar o eixo que discute o amor e o desamor — que é o melodrama —, as viagens, os passeios pelo interior, a ideia da dupla sertaneja, que foi tão marcante e atravessou os anos 80 e 90. Quantos pais, naquela época, queriam que seus filhos fossem ou jogadores de futebol ou formassem uma dupla sertaneja?

Também temos aqui uma discussão sobre política, sobre a origem da música caipira até a música sertaneja mais contemporânea — passando pelas questões políticas e geopolíticas também. Então, sinceramente, não saberia escolher uma só. Acho que todas essas partes formam um grande conjunto — muito interessante como um todo.

Se você pudesse escolher o tipo de experiência que as pessoas que estão vindo aqui para ver a exposição tivessem… Que reflexão você gostaria que elas levassem consigo ao sair daqui?

Eu acho que essa é uma exposição para quem gosta de música sertaneja — e também para quem não gosta. É uma exposição para quem gosta de arte. Porque, afinal de contas, essa é uma exposição sobre arte contemporânea, não é mesmo? 

E eu acho que, ao visitar a exposição, talvez as pessoas possam sair daqui com um olhar mais atento para esse pano de fundo musical que faz parte da nossa cidade. E que elas possam estar mais antenadas, de forma crítica, a algumas questões que estão aí, presentes no nosso cotidiano.

Para concluir, me conta sobre o futuro da galeria. Você já tem ideias para as próximas exposições que vão abrir? 

Bom, a gente está nesse momento finalizando essa exposição. Eu gostaria muito que essa exposição — que é um gesto crítico curatorial inicial — pudesse crescer de alguma forma, sabe? 

Então, pensando especificamente nela, quem sabe ela não se transforma numa outra exposição, um pouco maior, em um outro espaço? É isso que eu gostaria de pensar para o futuro.

A entrevista com o curador Paulo Duarte-Feitoza evidencia a densidade conceitual e o compromisso político da exposição Não vou negar. Ao tratar a música sertaneja não como um simples pano de fundo, mas como linguagem estética e campo simbólico de disputa, a curadoria propõe um deslocamento importante: em vez de reforçar estereótipos ou folclorizar o sertanejo, a mostra o coloca no centro de debates contemporâneos sobre identidade, pertencimento e representação. A crítica sensível ao conservadorismo tradicionalmente atrelado ao gênero aparece, aqui, em paralelo à valorização de sua potência afetiva, coletiva e transformadora.

Nesse sentido, a exposição atua como um dispositivo de escuta e de reconfiguração dos espaços da arte. Ao reunir artistas que transitam por universos distintos — da pintura à performance, da fotografia à instalação —, Não vou negar cria um campo de convivência entre expressões estéticas que são, muitas vezes, invisibilizadas ou marginalizadas pelas instituições culturais. O trabalho de artistas como Cássia Nunes, que reinterpreta símbolos populares a partir de perspectivas críticas, ou de Samuel Costa, que documenta com sensibilidade o cotidiano goiano, revela uma arte profundamente enraizada em contextos locais, mas aberta a leituras universais.

Além disso, a própria presença da dupla sertaneja Camila & Thiago na abertura da exposição sinaliza um esforço de romper com as fronteiras entre arte popular e arte erudita. Ao propor esse encontro entre o palco e a galeria, entre a canção e a instalação, entre o caminhão e o museu, a mostra amplia o alcance da arte contemporânea e desafia as estruturas tradicionais de legitimidade cultural. Como aponta o curador, o sertanejo não está ali para ser decorativo ou representado: ele é agente, presença viva, e dialoga diretamente com os visitantes, ativando memórias e afetos que atravessam classes, gêneros e gerações.

Com essa proposta, Não vou negar se consolida como um projeto que articula pesquisa acadêmica, experimentação estética e engajamento social. Ao pensar o sertanejo como um território em disputa — cheio de vozes, contradições e histórias —, a exposição oferece ao público a oportunidade de ver, ouvir e sentir esse gênero de forma expandida. Que esta mostra possa inspirar outras iniciativas que valorizem as culturas populares em sua complexidade e pluralidade, reconhecendo nelas não apenas o passado de um país, mas também os caminhos possíveis para o futuro.

 

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