
“Essência Negra”: quando a arte se torna resistência e denúncia
Espetáculo reúne teatro, canto e dança para colocar o corpo feminino negro no centro da cena e provocar reflexão sobre racismo estrutural
Por: Mateus dos Santos
“Essência Negra”, que estreiou ontem (04) continua hoje (05) às 20h no Centro Cultural UFG e de forma gratuita, não é apenas um espetáculo: é uma convocação à escuta, ao olhar e à reflexão sobre o que significa existir e resistir em um corpo negro no Brasil contemporâneo. Ao reunir teatro, canto e dança em um mesmo espaço, a obra transforma a cena em território de afirmação. Mais do que entreter, ela tensiona estruturas sociais e expõe feridas históricas que seguem abertas, propondo à plateia não apenas uma experiência estética, mas também ética e política.
Corpo e Protagonismo
O espetáculo se destaca ao colocar o corpo feminino negro no centro da cena. Esse gesto, que pode parecer simples, é disruptivo em um país onde as mulheres negras são frequentemente marginalizadas na arte e na sociedade. Aqui, seus corpos não são silenciados ou estereotipados, mas sim agentes de criação, resistência e potência. A presença dessas artistas, entrelaçada a textos filosóficos e poéticos de autoras negras, cria um contraponto às narrativas dominantes e amplia o repertório de imagens possíveis sobre a negritude.
Em uma conversa com a artista e diretora geral do espetáculo, Liz Mirandah, ela destaca o peso desse espetáculo "O corpo é o centro do espetáculo, por que eu SOU UMA MULHER NEGRA, sou eu produzindo arte, sou eu colocando os meus pensamentos. Eu quero deixar evidente aqui, é que, quando uma pessoa negra é protagonista seja na arte ou em qualquer outra coisa, ela passa a ser o centro. A maioria da população brasileira é negra. A pergunta é: por que permitimos que a branquitude continue produzindo essas exclusões. O espetáculo quer ser parte de uma mudança não só do contexto da arte, mas da sociedade. Espero que essa mensagem chegue nas pessoas". Ela traz altivez quando fala sobre representatividade, uma palavra que o povo preto pode até saber o que significa mas é algo distante da realidade. Então, o espetáculo se apresenta com a proposta de colocar o corpo negro em evidência.
Artista Liz Mirandah/Divulgação
Ancestralidade e memória
Outro eixo fundamental é a forma como “Essência Negra” aciona a ancestralidade. Não se trata apenas de resgatar tradições, mas de reatualizá-las como força vital no presente. A performance sugere que a ancestralidade é, ao mesmo tempo, raiz e futuro: conecta quem assiste à herança afro-brasileira e, ao mesmo tempo, aponta caminhos de sobrevivência e reinvenção diante do racismo estrutural. Esse movimento cria um espaço ritualístico na cena, em que o público é convidado a compartilhar uma experiência de pertencimento e espiritualidade.
Liz, fala sobre a grande equipe envolvida no projeto para tornar o espetáculo imersivo e com uma grande carga histórica, "Tudo foi acontecendo muito organicamente. No grupo de leitura fomos incluindo mais autoras negras nos nossos encontros Lélia González, Cida Bento... Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo são autoras que temos admiração em comum. Então, juntamos as referências de cada um. E solicitei que o Renato fizesse uma pesquisa mais abrangente. Pensando autoras negras da literatura, da filosofia, antropologia que dialogassem com o espetáculo. Com a pesquisa e discussão dos textos selecionados tínhamos uma questão importante: o repertório. Portanto, os textos filosóficos e poéticos selecionados estão em diálogo com as músicas. E sabemos que a dor de toda curadoria é ter que escolher o que não vai entrar no projeto. Mesmo que tenha ficado muita coisa excelente de fora, foi essa inter-relação entre repertório e os textos que definiu o que ficaria ou não". Assim, selecionando materiais históricos e imprescindíveis para os espetáculos.
Arte e política
Por fim, a obra reafirma a arte como espaço de denúncia e de transformação. Ao expor o racismo estrutural que atravessa o cotidiano, “Essência Negra” não suaviza a realidade: confronta o espectador com ela. Mas o faz de modo poético, transformando dor em potência estética. Essa escolha revela uma consciência política sobre o papel da arte em sociedades desiguais: mais do que um reflexo, ela é um gesto de resistência ativa. O espetáculo, assim, não se limita a ser visto — ele exige ser sentido e pensado, deixando marcas que ultrapassam a sala de apresentação.
Em entrevista, a artista Liz, fala um pouco sobre esse papel confrontador do espetáculo, "A arte pode contribuir para pensar criticamente o mundo em que a gente vive. Ela nos permite que imaginemos outros mundos possíveis. Um mundo onde toda pessoa negra esteja livre do racismo e de todas as opressões. E que esse diálogo aconteça pela afirmação da nossa potência enquanto pessoas negras. O racismo insiste em nos dizer não. Principalmente quando somos jovens. Que nosso espetáculo possa significar um sim para nossa inteligência, nossa beleza, nossas riquezas. Dizer sim para nossas vidas".
"Dizer sim para nossas vidas", uma frase curta porém carregada de memórias e sentimentos, um "sim" que muitos jovens negros não sabem o significado, visto que a sociedade insiste em excluir o povo preto. Liz, ressalta que seu espetáculo vem para combater, porém vem também para mostrar e evidenciar a beleza do povo preto. Em um tempo que a autoestima vem sendo diluída no dia a dia como algo banal, sem importância. "Essência negra" é muito mais que um espetáculo, é uma chamada para o conhecimento e amor próprio.
Artista Liz Mirandah/Divulgação
Espetáculo: Essência Negra
Data: 04 e 05 de Setembro
Horário: 20h
Local: Centro de Cultura UFG (CCUFG)
Entrada: Gratuita
Mateus dos Santos é estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Goiás e estagiário de comunicação no Centro Cultural UFG. Atua com produção de conteúdo e cobertura jornalística de eventos culturais.
Categorias: Antirracismo cultural CCUFG Teatro CCUFG