Estreia no CCUFG, “A Morte da Galinha Caipira” revela a força poética e crítica da Nalini Cia de Dança
No espetáculo dirigido por Valeska Vaishnavi, a galinha caipira ocupa o centro da cena para questionar padrões corporais, ressignificar clássicos e aproximar o público do Brasil profundo.
Por: Mateus dos Santos

A Morte da Galinha Caipira aconteceu nos dias 25 e 26 de novembro, às 20h, no Teatro do Centro Cultural da UFG, marcando um momento decisivo na trajetória da Nalini Cia de Dança e inaugurando uma experiência cênica que provoca, desloca e encanta. Nesse cenário, a atuação de Valeska Vaishnavi como diretora artística ganha ainda mais evidência, revelando uma condução madura, investigativa e profundamente conectada às camadas simbólicas da cultura brasileira. A artista guiou o público por uma obra que rompe expectativas desde o primeiro gesto, assumindo o compromisso de expandir o entendimento do que pode ser dançado e de quais corpos podem ocupar o palco. Essa perspectiva, aliada a um rigor estético que não abre mão da sensibilidade, coloca Valeska no centro das discussões contemporâneas sobre dança, identidade e memória.
Ao longo de sua trajetória, Valeska se consolidou como uma pesquisadora do movimento que transita com naturalidade entre técnica, teatralidade e improvisação — caminhos que ganharam força no processo de criação deste espetáculo. Aqui, ela parte do embate entre o imaginário rural e as narrativas do balé clássico para construir uma dramaturgia que se equilibra entre o humor, a crítica e a poesia. É desse encontro entre a grandiosidade simbólica de obras europeias e a materialidade afetiva do Brasil profundo que nasce a potência artística de A Morte da Galinha Caipira. Ao transformar a galinha — figura simples, cotidiana e muitas vezes invisibilizada — em protagonista, Valeska articula uma reflexão delicada e ao mesmo tempo incisiva sobre pertencimento, padrões corporais e a urgência de ressignificar referências hegemônicas na dança.
Mais do que revisitar um clássico, o trabalho dirigido por Valeska propõe uma experiência que expande fronteiras e questiona certezas. A diretora constrói um espetáculo que convida o público a desacelerar, a observar o detalhe, a reconhecer a beleza que existe no gesto imperfeito, no corpo não idealizado, na narrativa que se desvia do esperado. É nesse tempo interiorano, mais largo e respirado, que a obra encontra sua força dramatúrgica, revelando a grandeza dos pequenos movimentos e a resistência silenciosa dos corpos que sustentam a vida cotidiana. Assim, Valeska reafirma sua relevância no panorama da dança contemporânea brasileira, oferecendo uma criação que se manifesta como arte, como crítica e como celebração da diversidade que compõe a cena.
Com essa visão ampla, múltipla e profundamente sensível, convidamos agora a diretora artística Valeska Vaishnavi a comentar o processo de criação, os desafios e as escolhas que deram corpo a essa obra singular. A seguir, ela fala sobre as referências, os embates e as potências que moldaram A Morte da Galinha Caipira.
Foto: Marcela Landeiro
ENTREVISTA
Mateus dos Santos: O espetáculo parte de referências do balé clássico, mas as reconfigura a partir do imaginário rural brasileiro. Como esse encontro entre tradição europeia e cultura do Cerrado orientou suas escolhas de direção e dramaturgia corporal?
Valeska Vaishnavi: Eu quis aproximar dois mundos que normalmente não se encontram: o balé clássico, cheio de regras e padrões, e o corpo simples e cotidiano da vida no Cerrado. Quando misturamos essas referências, o balé deixa de ser algo intocável e vira matéria para brincar e transformar. As escolhas de cena e de movimento vieram desse contraste, em vez da leveza e perfeição do balé, coloquei em foco o peso do corpo, o chão, o calor, o jeito rústico e direto da vida interiorana. É dessa mistura que nasce a dramaturgia da obra.
Mateus dos Santos: Durante os laboratórios de criação, os intérpretes trabalharam na fronteira entre técnica, teatralidade e improvisação. Como você conduziu esse processo para que cada corpo pudesse expressar sua singularidade sem perder a unidade estética da obra?
Valeska Vaishnavi: Deixei que cada intérprete encontrasse seu próprio jeito de ser “galinha”, seu modo particular de se mover e improvisar. O importante era que cada corpo tivesse liberdade, mas dentro de um mesmo ambiente poético: o tempo lento, o contato com o chão, a sensação de simplicidade e imperfeição. A unidade veio desses elementos comuns. Mesmo com gestos diferentes, todos estavam dentro do mesmo clima, da mesma intenção.
Mateus dos Santos: A crítica aos padrões corporais na dança é um eixo forte do espetáculo. De que maneira você buscou traduzir essa discussão para o palco sem recorrer ao discurso direto, mas sim ao movimento, ao humor e à metáfora da galinha caipira?
Valeska Vaishnavi: A própria galinha caipira já é uma metáfora forte: é um corpo comum, imperfeito, que ninguém valoriza. Ao colocar esse corpo no centro, e ao usar o humor — os trejeitos, os passos desajeitados — a crítica aparece de forma natural. O público percebe o contraste com o balé tradicional e entende que estamos falando de corpos que não se encaixam, mas que também têm beleza e força.
Mateus dos Santos: O tempo dilatado da vida interiorana influencia a cadência do espetáculo. O que esse ritmo mais lento, mais paciente, acrescenta à experiência do público e ao modo como a obra questiona expectativas de virtuosismo no balé contemporâneo?
Valeska Vaishnavi: O tempo lento faz o público prestar atenção em coisas pequenas que, normalmente, passariam batido. Ele tira a pressa da cena e deixa o movimento respirar. Com isso, o espetáculo questiona a ideia de que a dança precisa ser sempre rápida, difícil e virtuosa. O ritmo mais calmo mostra outro tipo de valor: a presença, a sinceridade do gesto, o tempo real do corpo e da cena.
Foto: Marcela Landeiro
A fala de Valeska Vaishnavi revela uma diretora que escolhe tensionar mundos distintos para construir uma poética própria. Ao aproximar o balé clássico — marcado pela rigidez, pela técnica e pela ideia de perfeição — do imaginário rural, ela cria um território onde a dança deixa de ser idealizada e passa a dialogar com o corpo real, o corpo cotidiano, o corpo que carrega histórias. Sua abordagem rompe com hierarquias tradicionais da dança, transformando a galinha caipira em símbolo de resistência e reinvenção estética. A diretora mostra que a força da obra nasce justamente do atrito entre essas referências, permitindo que o rústico, o pesado e o imperfeito se tornem matéria coreográfica legítima, potente e sensível. É dessa junção inesperada que a dramaturgia do espetáculo adquire profundidade e uma identidade marcadamente brasileira.
Ao destacar a liberdade dos intérpretes, o humor como ferramenta crítica e a importância de um tempo dilatado — inspirado no ritmo interiorano — Valeska cria uma experiência que vai muito além da técnica: ela convida o público a perceber beleza onde antes havia descaso, e a reconhecer que gestos simples podem carregar densidade simbólica e política. Sua direção propõe outra forma de ver, sentir e habitar a dança, valorizando presenças que escapam dos padrões e abraçando a singularidade de cada corpo. Nesse gesto, o espetáculo reafirma não apenas uma estética, mas um posicionamento. E é a partir dessa força que deixamos aqui um convite: que o público continue acompanhando a temporada de A Morte da Galinha Caipira e se permita viver essa experiência que transforma, desloca e amplia o olhar sobre a dança e sobre o Brasil que nos atravessa.

Mateus dos Santos é estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Goiás e estagiário de comunicação no Centro Cultural UFG. Atua com produção de conteúdo e cobertura jornalística de eventos culturais.
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